Logo no começo, quase antes dele, como nas Escrituras, vem o verbo, o verbo tecer. Um tecido é o que Marcelo Callado nos oferece de imediato, e o parece fazer senão para que possamos, depois, ao longo do álbum, e imergindo nele, alcançar o que só o pode ser de forma mediada, apurada, por meio da escuta cuidadosa, sentimental mas também – por que não? – racional. Trata-se da razão que se sente. É esse caminho, que vai “do abstrato ao concreto”, da superfície às profundezas da música, aquele que nos possibilita, talvez, ir além do sensível e suas aparentes (e muitas vezes falsas) certezas imediatas – que tanto atormentaram o Espírito em sua saga fenomenológica descrita pelo jovem Hegel. E é esse caminho, dialético, aquele que nos permite escutar e conhecer o novo álbum de Marcelo Callado, Hiato.
O tecido só é vivo porque, como um beijo de mar, se movimenta, se transforma e, tal qual um beijo de sol, leva pro futuro e não se deixa no passado. O Ser-tecido só pode ser ao ser constantemente tecido, costurado, emendado, inovado, o que implica, ao mesmo tempo, e o tempo todo, ser e já não o ser mais. Suas contradições o negam e o impelem para frente, sempre em frente. Tecido em frente. Suas linhas são como as heráclitas águas, correm e se modificam, e assim alteram o conteúdo do todo, o tecido vivo de Callado, um rio que corre ao longo de um Hiato sem hiato. Se a “verdade está no todo”, e o se o “verdadeiro é o vir a ser de si mesmo”, como sentenciou o supracitado filósofo alemão de antanho, a verdade do novo disco de Callado, o seu substrato, ou o que deste é subtraído por ser de fino trato, parece estar já contida no seu tecido inicial apenas para depois se revelar, já diferente, já outra e ela mesma, ao final. No tempo “das coisas que levam tempo”, nas “tempestades” e nos “dias tranquilos”, nas marés por vezes cheias e em outras baixas, o disco faz e segue seu curso. Próprio. Rio próprio. A sua verdade musical e poética se locomove e vai, de forma coetânea, sendo construída e conhecida. E essa verdade, na arte, pode ser a verdade que só se sente.
Talvez seja cair num lugar comum invocar aqui, como recurso analógico, os conhecidos galos de João Cabral de Melo Neto que tecem a manhã, mas possivelmente não seja escusado lembrarmos dos “rios sem discurso” do mesmo poeta, nos quais as água quebradas “em pedaços, em poços d’água, em águas paralíticas” não permitem que elas sejam, em verdade, um rio, um “curso de um rio, um discurso rio”, uma “sentença-rio”. E esse rio, verdadeiro, só pode mesmo transcorrer quando, no movimento do todo, hegelianamente superam-se as frases das águas paradas, coaguladas, estanques, as frases que, ensimesmadas, se mordem por prazer. A nova obra de Callado, que conta com velhas e novas parcerias sugestivas (Samantha Capatti, Ricardo Dias Gomes, Nina Becker, Raïssa de Góes, Ava Rocha, Ciça Góes e Monique Lima), nos permite, é claro, entrever muitas das suas influências constitutivas, seus tons e timbres cosmopolitas, sua melancolia fog londrina e suas guitarras mutantes e baianas. Suas palavras, frases e notas estão todas lá, por óbvio. Mas a verdade do Hiato de Callado consiste justamente no fato de não ser uma mera soma de partes coaguladas e estanques, de matrizes justapostas, de frases ao lado de outras frases – e de fases (do autor) seguidas de outras (de suas) fases. Marcelo Callado entorna tudo que já bebeu e volta pra ver no que deu; com amor, sempre com o amor Do amor, se esforça e torna a buscar o que é seu, e (se) encontra. “O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, isto é, a unidade do diverso”, disse Marx. E o novo disco de Callado é uma unidade sintética, uma superação de suas antigas e novas influências e referências, o que faz de seu autor um artista dotado de estilo próprio e, por conseguinte, um artista próprio, e sempre em movimento – ainda que o rumo desse movimento seja o da contramão. Na contracorrente, e contra os ventos reacionários – “por que não, por que não?”
E talvez tenha sido só por meio desse movimento, desse carregar incontinente de sua própria cruz – e quem não carrega a sua? –, que a concretude da arte de Callado tenha podido fazer-se a si mesma e, ao fim, como a coruja de minerva, tenha tomado ciência de sua dialética experiência. E talvez agora, e talvez sem querer, o espírito do amigo Marcelo, finalmente, se saiba espírito. Fremido espírito.
Sou o Marcelo e toquei e toco bateria com: Caetano Veloso, Jorge Mautner, Branco Mello, Nina Becker, Silvia Machete, Alice
Caymmi, Ava Rocha, Kassin, Canastra, Rubinho Jacobina, Lafayette & Os Temendões, Lucas Santtana, Jonas Sá, Arnaldo Antunes, Zé Bonitinho, Domingos de Oliveira, Do Amor, Carne de Segunda…….
Agora é a vez de lançar meu novo disco "Hiato"....more
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